Dia de Santo Antônio

Regina Colluci nasceu quando São Paulo fervilhava com a realização da Semana de Arte Moderna de 1922. Como muitas famílias italianas, no entanto, ela não estava na capital. Veio ao mundo em uma fazenda de café no interior do estado. Aos 15 anos, já havia morado com os pais e irmãos em quatro lugares diferentes. Foi quando seu pai, Francesco, ordenou para sua mãe:

– Eugênia, faça as malas! Nós vamos mudar! – Disse, com seu sotaque que transformava o “ge” em “dje”: “Eudjenia”.

A mulher respondeu:

– Outra vez, Tiesco? Má non basta de tantas mudanças?

– Desta vez é diferente. Mio amico Ângelo – de novo: “Andjelo” – comprou umas terras e me chamou para ser sócio! – Explicou ele, empolgado.

– Mas aí é diferente, comemorou Eugênia; terra própria é outra coisa!

Francesco explicou:

– Os machadeiros já foram na frente, derrubando a mata, de maneira que o lugar já é campo aberto. Tem água, as terras são boas, nós vamos poder plantar, colher e viver!

– Viva!

 

Logo estavam nas estradas e picadas abertas no vasto sertão. As mulas puxavam a charrete com a família. Não estavam sós, pois outros italianos também seguiam para o novo território. A viagem era longa e cansativa. Às vezes, era preciso parar para abrir caminhos fechados pelo tempo; outras vezes, era a doença que atacava os viajantes: malária, febre amarela, desidratação, disenterias provocadas por intoxicações alimentares.

Assim, um dos irmãos de Regina passou mal durante a viagem. Primeiro, começou a vomitar. Depois, passou a defecar sem controle, um líquido marrom claro e fedido. Eugênia o deixou peladinho, para facilitar o socorro quando a diarreia atacasse.

O menino tinha nove anos. Já não conseguia se alimentar da pouca comida que eles tinham. Regina suplicou:

– Tiesco, precisamos de um médico!

– Onde vamos achar médico aqui nesse sertão, mulher?

Pararam então em uma pousada de tropeiros, no caminho. Havia pouca gente ali, todas de passagem: comerciantes, fugitivos, pessoas sem lugar nem família.

– Não temos médico aqui, disseram.

Sem socorro nem saída, o menino morreu. Regina chorou:

– Lucca!

Eugênia lamentava a sorte ruim de terem partido para lugar tão longe.

– Meu irmão foi morar em São Paulo! Está bem de vida! Por que eu também não pude ir? Que sorte maledetta!

Francesco tentava ser forte, mas estava destruído por dentro. Com todos em pranto, Lucca foi enterrado ali mesmo, apenas com uma cruz de galhos a indicar que uma criança havia partido muito cedo desta vida.

– Vamos continuar, decidiu Francesco.

 

Dias depois, já estavam próximos do destino. Alguns haviam ido à frente, picando as mulas para que corressem e chegassem depressa. Preparariam o lugar para a chegada das famílias. Mas Regina também começou a passar mal. Seus lábios rosados perderam a cor. A pele branca ficou azulada, pálida, com as veias aparecendo sob a carne translucida.

Ela também não conseguia comer. Estava fraca. Sentia frio e calor. Ora estava com febre, ora estava com o corpo gelado. A viagem era desconfortável. Não havia como dormir direito, os mosquitos e pernilongos incomodavam. Durante o dia, o sol castigava; durante a noite, o vento gelado do cerrado indicava que o inverno estava próximo.

Seu amigo Giuseppe estava em pânico. Não queria ver a amiga assim. Torcia para que chegassem logo ao ponto final da viagem. Regina também lamentava:

– Vou perder minha bambina!

Regina estava mal. Vomitava. Havia emagrecido muito.

– Vou morrer, Giuseppe! – Disse ela para o amigo.

– Não diga isso! Você é forte, Regina! – incentivou ele.

– Não. Eu vou encontrar o Lucca, afirmou ela.

Finalmente chegaram. Havia um rio. Era caudaloso, mas a água turva. Francesco anunciou para a família:

– Esse é o Rio Guaruí. “Rio dos guarus”, na língua dos índios. Guaru é um peixinho pequenininho que deve ser engolido vivo por quem quer aprender a nadar, contou o chefe da família.

Eugênia repeliu:

– Tiesco, essa água é turva! A bambina precisa da água boa, limpa! Se não ela vai morrer! – E chorava.

Um dos novos colonos falou:

– Tem um córrego próximo, que deságua neste rio. Vamos lá ver.

Francesco e mais alguns homens foram procurar o curso da água. Era um fiozinho serpenteando pelo campo. Ele descia uma colina suave, que eles subiram seguindo o caminho da nascente. Andaram por pouco tempo até encontrarem um olho d’água.

– É aqui! Comemorou Francesco.

Os rapazes que tinham ido à frente da caravana já tinham feito algumas cabanas com as árvores que haviam derrubado para isso:

– Aqui tem muitas cabreúvas, madeira boa de cortar, explicaram eles.

Aquele cabreuval determinou a vida deles. Os demais membros das famílias foram até ali. Regina ainda estava mal, mas a água da mina era excelente e a moça, hidratada, já começava a se recuperar. Eugênia pediu:

– Francesco, essa água é excelente. Podemos construir nossa casa aqui?

Francesco conversou com os demais colonos. Deliberaram que a fonte tinha que servir para todo mundo. Então, as casas seriam construídas em volta. Ali próximo, ergueram uma cruz.

– Vamos construir uma capela para Santo Antônio!

Eugênia contrariou:

– Ainda faltam algum tempo para o dia de Santo Antônio. Por que não damos a ela o nome do santo do dia de hoje?

Francesco disse:

– Nós somos devotos de Santo Antônio. Se faltam alguns dias, a gente constrói para inaugurar no dia de Santo Antônio. Quem sabe nós conseguimos trazer o padre da vila que tem há algumas léguas daqui para rezar uma Missa?

A vila citada por Francesco seria, no futuro, a Sede da Comarca. A ida até lá foi antecipada, pois um acontecimento mexeu com a vida das famílias.

Regina ainda não tinha se recuperado de todo. Eugênia cuidava dela, mas tinha os outros bambinos para olhar, além de ajudar os outros colonos e o marido na preparação da terra. Num daqueles primeiros dias no novo território, Regina sofria:

– Estou com frio!

Eugênia olhou para o céu límpido. Disse então:

– Será que vai gear?

Diante da possibilidade, ordenou para a filha:

– Gina, vai deitar no galpão. Se cobre e fica lá!

Giuseppe viu a menina entrar e a seguiu:

– Tudo bem com você? – Perguntou o jovem de 17 anos.

– Ainda estou fraca, respondeu ela.

Conversaram um pouco. Regina deitou-se e lamentou:

– Estou com frio. Não consigo me esquentar. – E tossiu um pouco.

Giuseppe ofereceu-se:

– Eu vou esquentar você.

E deitou-se ao lado dela, abraçando-a por trás. Ela estava gelada. Ele a enlaçou, sentindo os seios pequenos e flácidos roçarem seu antebraço. Dormiram assim.

Quando o sol nasceu, Francesco entrou no galpão e encontrou os dois jovens dormindo abraçados. Esbravejou:

– Mas o que é isto? Que falta de vergonha é essa?

O casal levantou de um pulo. Para sorte deles – e porque nada demais havia acontecido -, estavam vestidos. Mesmo assim, Francesco ficou muito bravo:

– Vão ter que casar!

Ângelo era o pai de Giuseppe. Veio para junto da família do amigo e declarou:

– Eu faço muito gosto!

Giuseppe ficou calado. Regina também. Não entendia porque tanto alvoroço. Eugênia, ao contrário, não gostou:

– Mas ela ainda é uma criança, uma bambina!

Nisso Francesco puxou de Regina o pano que lhe servia de vestido, deixando-a nua na frente de todos. Assustada e constrangida, ela colocou uma das mãos sobre os seios e a outra sobre a região genital. O pai gritou:

– Ela já tem pelos nas vergonhas! Já pode casar, sim!

Com tudo aquilo, decidiram ir até a vila e oficializar a união. No cartório, o escrivão que fez o registro mudou os nomes italianos. A certidão constou:

 

“Matrimônio de

José D’Agostino e Redina Colluci

Ele, filho de Ângelo D’Agostino e Agueda D’Agostino

Ela, filha de Francisco Colluci e Eugênia Colluci

A nubente passa a assinar-se Redina D’Agostino

 

O referido é verdade e dou fé

 

10 de junho de 1937”

 

Ali mesmo passaram na casa paroquial e conseguiram convencer o padre a ir celebrar o casamento na recém-construída capela de Santo Antônio. Ângelo se comprometeu a vir à vila, de charrete, buscar o padree. Francesco ficou de caçar umas pacas e uns jacus para fazer um almoço com carne. Com uma grande festa, no dia 13 de junho de 1937 realizaram a inauguração da capela, com o casamento de José e Redina, que, assim tornou-se a dona Dina, mãe de cinco filhos vivos – e alguns falecidos – e avó de inúmeros netos, dentre eles Wagner D’Agostino.

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